31.10.12

O meu manifesto e o de uma beterraba: num bolo e numa salada

Uma amiga deu-me uma beterraba, uma grande beterraba. "Essa grande é para a Catarina", disseram-me que disse. Tão grande era a responsabilidade que ali ficou à minha espera, pacientemente, no frigorífico, mais tempo do que devia, confesso. Mas foi resistente e valeu a pena a espera. Obrigada Lina.

Passei no código. Venci as rasteiras semânticas dos pode, deve e tem de e agora é só não atropelar ninguém, não passar em vermelhos nem tirar o pé demasiado cedo na embraiagem. Easy peasy.
A condução, a edição da minha zine, um concerto absolutamente espectacular, as conversas com pessoas inspiradoras na faculdade (ex faculdade!), o livro que leio e a demanda pelo meu primeiro spot profissional - com a minha experiência de vida no punho erguido! - geram picos de entusiasmo, nervosismo, um certo donaire pouco modesto (apareceu-me como sinónimo de garbo e pareceu-me mais... garbosa) e uma ligeira impaciência que, por sua vez, geram em mim um desejo brutal de algo com chocolate, porque como já disse outras vezes, as indulgências para mim são os desejos mais exigentes. Tanto que nunca preciso de decidir o que quero, simplesmente sei-o.



O último bolo que fiz antes deste foi também do mesmo autor. O que é que posso dizer? É a minha alma gémea da gula - gastronómica, porque a minha gula exige arte! Por isso é que, entre tantos bolos de chocolate e beterraba que existem, escolhi o dele. É um dos três autores que faço os possíveis para seguir os ingredientes à risca. Porque sei que vale a pena e é para mim uma garantia. Não sei se é melhor ou pior que os outros e a sua apreciação não é unânime, sendo que para alguns o sabor da beterraba é, e passo a citar "demasiado acre". Só sei que me chegou bem... duas grandes vezes.

O bolo é tal como Nigel o descreve: extremely moist. Mais que um chiffon. Da primeira vez que o comi, ainda à temperatura natural, era húmido e até mesmo meio cremoso, como se estivesse ligeiramente mal cozido no centro. E quando pensava que não poderia ficar ainda melhor, a segunda fatia, retirada do frigorífico, endureceu e adquiriu uma textura absolutamente maravilhosa e indulgente, quase como o recheio de uma tarte, e atingiu o auge do seu sabor. Não ficou de todo igual ao da foto na receita, talvez esse tenha sido feito com beterraba dourada, não sei. Mas sei que ficou bom. E não se assustem se no dia seguinte a cobertura do creme fraîche ficar cor de rosa. A receita completa aqui.



Dos três quartos de beterraba que sobraram, um quarto foi para esta salada, a never ending salad.
Tem tudo, como eu gosto. Doce, salgado, amargo e ácido. É fantástico como um sabor suporta o outro, sem o anular: o aroma anisado do funcho e o sabor salgado do feta fundem-se num só sabor, a subtileza da beterraba cozida e a doçura crocante da pêra realçam-se mutuamente, e o toque amargo da mizuna  com o sabor único da quinoa, envoltos no simples vinagrete de mostarda envolvem tudo numa só sinfonia. A salsa foi a erva escolhida, só para perfumar. É como um concerto: temos pianos, contrabaixos, clarinetes, violinos, trombones, saxofones (a minha literacia nesta area não é grande, lamento) e o maestro. Se calhar não é A melhor receita para aplicar a analogia, mas também serve. E que cores!




































Salada morna de quinoa com beterraba, pêra, feta, funcho e rabanete

1 chalota, cortada em rodelas finas
2 c.chá de vinagre de vinho tinto
1 c.chá de mostarda
2 c.sopa de azeite extra virgem
sal e pimenta preta acabada de moer

1 pequena beterraba vermelha (cerca de 250g), cozida e cortada aos cubos
1 pequena beterraba branca (cerca de 250g), crua, laminada às rodelas
4 rabanetes, fatiados finamente
1 pêra, cortada aos cubos
100g de feta, cortado aos cubos
1 cháv. de quinoa, escoada em água fria corrente, cozida e ainda quente
1/2 funcho, laminado
2 punhados de mizuna ou agrião
1 c.sopa de salsa, picada

Para fazer o molho: colocar a chalota numa pequena tigela ou um frasco pequeno e cobrir com o vinagre, pressionando as rodelas para garantir que o vinagre as cobre completamente. Deixar por alguns minutos, depois acrescentar a mostarda e misturar. Bater bem. Cobrir com o azeite, temperar com uma pitada de sal e pimenta (se a mostarda for Dijon provavelmente não precisam de muita) e de seguida bater novamente, ou fechar o frasco e agitar energicamente para que o molho fique emulsionado.
Para fazer a salada, pouco mais é preciso fazer que cortar os ingredientes, empilhá-los num grande prato como preferirem, temperar com o molho e voilà, munch away.

serve 2


a ouvir: Towers - Bon Iver

30.10.12

(Descobri) os diospiros

Não fosse eu curiosa e de mente aberta, pronta a quebrar preconceitos de infância e não teria descoberto a beleza por detrás daquele fruto que cobria o chão de uma camada peganhenta e inundava o ar com um odor a podre num certo recanto do jardim do meu colégio e que tanta repugnância me causou durante cinco anos.

Comido simples é talvez demasiado enjoativo, mas acompanhado é um mimo. Nunca vi um fruto que fosse compota ao mesmo tempo.



viscoso mas gostoso.


com iogurte para levar.


com papas de aveia ao pequeno-almoço.

23.10.12

Mimos do Poial - o feijão

O cabaz que recebi da terra do Poial é uma pequena grande aglomeração de potencial. Fiz um inventário na hora, claro. As ervas foram para um muito improvisada, muito feia e muito saborosa salada morna de batata doce, um dos minis pimentos e requeijão.

Um raminho de: alecrim, funcho, tomilho, manjerona e cebolinho, tudo bem picadinho e envolvido no requeijão. Depois o calor que emana da batata doce grelhada e o azeite fazem o resto, intensificando e misturando os sabores numa só garfada.





O topinambo, que não era mais que uma amostra, valeu-me para uma sopa pseudo-tailandesa de udon noodles, juntamente com uns pimentos.



Com as malaguetas tem sido mais complicado decidir o que delas fazer. Por muito atractiva que seja a ideia de fazer um chutney que encontrei no Culinário de 2008 ou um dos molhos de algum dos meus autores de referência, a verdade é que picante lá em casa, só com bastante moderação, ou pelo menos nada que se compare ao valente palato dos mexicanos ou dos tailandeses. Com elas fiz este molho até agora. É super versátil, tendo já servido uma colherada generosa sobre um peito de frango, refogado num arroz de pimento e dando um twist refrescante a uma posta de pescada cozida.


Depois há (havia!) o feijão longo e aquele poblano negro, de destino marcado desde que lhes pus os olhos em cima.

Por hoje fiquemo-nos pelo feijão. Lembrei-me logo do momento em que a Joana nos mostrou aqueles longos fios em que não dá para perceber onde acaba o ramo e onde começa o fruto, dizendo que, por serem tão tenros e finos, não é necessário cozê-los previamente antes de fritar nem retirar os fios. Inspirada pela tempura do Tomo, enchi-me de coragem e enfrentei os meus demónios da fritura. Fiz peixinhos da horta. Na verdade, foi mais tempura que os nossos conhecidos petiscos, porque a massa é feita apenas com cerveja e farinha.
Foi este o nosso jantar, com uma singela posta de bacalhau e um molho de tomate que com um ingrediente especial passa de modesto a magistral, dando gosto e sabor a estes tempos que não perdoam, cujas amarguras por vezes não conseguimos evitar de levar para a mesa.




Tempura de feijão longo e feijão-verde com molho de tomate e bacalhau

Esta tempura é apenas uma das mil variantes existentes, pelo que não é, de todo, a que mais aconselho a fazerem - até porque para isso teria de ter feito mais do que uma maneira para compreender bem as diferenças. Façam como acharem melhor para vocês.
A avaliar pela fotografia, escusado será dizer que ficou longe de perfeita, mas apesar de tudo sentia-se o crocante do polme e do próprio feijão, que não quis cozer completamente e sentia-se aquele sabor típico a frito mas com a leveza da tempura. O mais importante é que mais que os três elementos como um todo funcionam mesmo muito bem e esta é de facto a razão mais importante que me levou a colocar aqui esta receita.
O molho de tomate é incrivelmente versátil, de maneira que não se preocupem se sobrar porque certamente encontrarão outras oportunidades para o utilizar: sobre um torricado, juntar grão para fazer uma sopa com um ovo escalfado ou envolvido com atum desfeito e massa, o hidrato de carbono todo-poderoso que salva qualquer crise de inspiração. Eu passei-o no final para ficar homogéneo e para envolver melhor o bacalhau e o feijão, mas podem sempre deixá-lo inteiro.

 350g de feijão verde, feijão longo ou uma mistura
900ml de óleo (que faça 5cm de profundidade numa frigideira de 3 litros)
1 cháv. de farinha
1 cháv. (240 ml) de cerveja

2 1/2 c.sopa de azeite
1 1/2 c.chá de cominhos
1/2 c.chá de pimentão doce
2 c.chá de canela
1 cebola média, picada
125ml de vinho branco
400g de tomate em lata
1 malagueta sem sementes, finamente picada
1 dente de alho, esmagado
sal e pimenta q.b
salsa, picada

4 postas de bacalhau


Escaldar apenas o feijão verde durante 4-5 minutos, ou totalmente cozidos, conforme preferirem.
Aquecer o óleo na frigideira.
Bater a farinha e a cerveja numa tigela. e mergulhar cerca de 10 feijões de cada vez na massa.
Testar o óleo pingando um pouco da massa na frigideira. Se começar a fritar instantaneamente e a borbulhar é porque está pronto para fritar. Nessa altura, adicionar os 10 feijões de cada vez e fritar cerca de 1,5-2 minutos, até a massa estar bem frita e estaladiça.
Retirar o feijão da frigideira, colocar sobre papel absorvente e polvilhar com sal.

Para fazer o molho, aquecer o azeite numa frigideira larga.
Adicionar as especiarias e a cebola e cozinhar por 8-10 minutos a lume brando, até a cebola ficar completamente mole.
Adicionar o vinho e levantar fervura durante 3 minutos. Juntar os tomates esmagados, a malagueta e o alho. Cozinhar 15 minutos a lume brando até engrossar bastante.
Ajustar o tempero e passar tudo até que fique um molho uniforme mas não totalmente liquido. Reservar tapado. Na altura de servir, polvilhar com salsa.

serve 4


a ouvir: Warsaw - Sharon Van Etten

19.10.12

Memória. E um (escrito de memória).

escudos, 2008


1. Um pequeno depósito de incredulidade no fundo dos teus olhos
2. Um breve estremecimento no movimento do coração (do meu coração)
3. A impressão de alguém olhando-te atrás de ti.
4. Uma voz familiar num sítio cheio de gente (que só tu ouves dentro de ti).
5. Um súbito silêncio entre as sílabas de certas palavras que fica depois a pairar perto dos lábios
6. A ignorância de alguma coisa que ainda não sabes que não sabes.
7. Uma palavra só, aguardando, uma palavra que basta dizer ou não dizer, abrindo caminho entre ser e possibilidade.
8. O que não sou capaz de dizer, dizendo-me.
9. Eu (um lugar vazio) para sempre; tu para sempre.
10. Outras duas pessoas de que outras duas pessoas se lembram.
11. Esse país estrangeiro, o tempo.


Manuel António Pina





17.10.12

They keep on coming





Dão-me os bons dias e um sorriso todas as manhãs, ao acordar.


Acabei de passar os olhos pelo texto anterior e tenho de pedir desculpa as gafes e erros enormes que dei (mais que o habitual). Apesar de ser transcrito do papel, foi um trabalho de corte e costura extenso e confesso que, depois de colocar a última fotografia, não tive paciência nenhuma para o reler. My bad. Por outro lado foi confortante relê-lo acompanhado das imagens, como uma história ilustrada.


a ouvir: Kreuzberg - Bloc Party

14.10.12

Da Terra ao Prato, at last


Confessar que esta é a terceira versão que escrevo deste texto é assumir que: um, provavelmente devem sair mais e escrever menos; dois, devia pensar menos e escrever mais.
Antes de começar a escrever qualquer texto de maior importância que uma simples entrada de diário, faço um exercício, uma espécie de lista sem tópicos implicitamente intitulada "o que quero dizer" (obrigada Anne Lammot). O problema está quando há tanto para dizer e não sei por onde começar, acabando por eventualmente misturar o que realmente interessa com outras coisas não tão importantes, sem conseguir destacar umas sobre as outras. Mas hoje, dez passos dados da porta de casa, ainda com o gosto do chá de erva-príncipe na boca, descobri como este texto iria começar.
Descobri o que foi para mim aquele Da Terra ao Prato na Quinta do Poial. Foi chá de erva-princípe. O que era para mim a infusão de uma erva sem piada e nenhum sabor de se fazer notar, transformou-se num néctar doce e paliativo para dias quentes e muita companhia. Da terra levou-se ao prato e ao copo, passando para a boca e terminando, não no estômago, porque apesar da abundância o peso não se sentiu, mas no coração.



Descrever o dia seria como descrever uma paisagem natural: por mais poética e justamente que o fizesse, apenas é compreendida quando é vivida.
Para mim basta falar-vos da fluidez que ali se sente. Tudo flui como as águas de um rio ainda perto da nascente: com uma intrínseca leveza, rápida mas sem pressa. Flui a faca do chef Tomo a cortar o peixe, os jarros frescos de chá e vinho branco da cozinha para a mesa lá fora, e o seu conteúdo flui para os copos e deles para as nossas gargantas sequiosas e poros desidratados. Flui a visita à plantação, os anfitriões de dentro para fora da casa e os convidados da mesa à panela. Fluem os pratos entre mãos e braços sobre a mesa e fluem os humores do vinho e da boa conversa. Do meu prato flui incessantemente a jicama maravilhosa de sabor suave que parece nabo mas com toda a frescura da pêra, flui o mais fantástico prato de cavala que já comi e flui o pão ensopado nos sucos irresistíveis do prato e depois os da travessa, quando no primeiro já nada restava para ensopar, flui o sangue pela minha veia alentejana que não se conseguiu controlar. Flui uma ligeira brisa pontual que alivia o calor que já não se previa e fluem-me agora as palavras que não consigo parar. Mas deixo as fotografias tentarem falar por si.

o prenúncio da cozinha




ovos escalfados na perfeição que me pareceram bolas de mozzarella


à cavala marinada tira-se a espinha




















e passa-se às mãos maquinais do mestre, que me hipnotizaram completamente


13h da tarde, eis-nos na terra, deste Da Terra ao Prato  


 manjericão roxo, Joana e os pés de feijão (sim, o que ela tem na mão é um feijão) e couves, muitas couves - a do meio é a toscana.

Couves-de-bruxelas

 salva





... e pimentos. Pimentos, chillis ou como quiserem chamar-lhes, tanta era a variedade que com o calor do Sol perdi o tino completamente. Uns são fofinhos mas queimam (literalmente), outros, que achamos potenciais assassinos, não perturbam a lingua mais sensível. 
Aqueles pequeninos laranja com bico são os petit-beck, e a pêra que vem na imagem acima não é pêra nenhuma, é mais um deles.


folhas de mostarda.


T-shirts ensopadas, caras rosadas e estômagos vazios e prontissimos para a parte da mesa.





últimos retoques: no sashimi de cantaril, na mesa e nos temperos das saladas e nas bebidas.
pequenas rodelas de beringela recheadas com pimento, requeijão da zona, azeitonas, coentros e cebolinho picado comidas de uma dentada.


desvendado o segredo dos ovos escalfados: sopa de miso com o ovo e um pedaço da abóbora onde descansavam, milho e tupinambo (aka alcachofra de jerusalém).




salada de mizuna e tomate com um levíssimo e saboroso tempura de cantaril e barriga de cherne.



aquelas fatias brancas são a jicama: toscas como nabos, viciantes como batatas fritas (segundo dizem) e frescas como pêras.

perdi-me com os sabores japoneses pelo que mal toquei na pasta de feijão. A salsa verde, idêntica à que fiz há dois meses, fez-me ingerir água para um batalhão.



Disseram-me que a jicama em chiffonade às tiras que veem em cima foi na verdade cortada às tiras como se se descascasse um nabo até ao fim e depois cortada assim, em finos palitos.
Os molhos, acreditem, são, pelo menos para o meu modesto e inexperiente paladar (sem falsas modéstias, acreditem) um complot magistral de sabores mediterrânicos, mexicanos e japoneses. Mesmo mesmo a pedirem por pão.

uma maravilhosa tarte, que deixou a todos a desejar mais, de frangipane e amêndoa feita pela Kayo, uma nova amiga, cúmulo da amabilidade e excesso de modéstia.


o crumble não foi tão unânime mas confesso que adorei porque por baixo do crocante, se não contar com a acidez do physallis, acreditem, sabia a Cerelac de pêra.

















Para terminar em grande, leveza e beleza, um sorvete de manjericão com morangos. Com Bimbi ou não, rendi-me.
























E quando pensava que todo o mimo já tinha esgotado, eis que a Mª José nos presenteia com um pequeno conjunto de pérolas do seu "jardim". Pequenos brinquedos que tenho vindo a utilizar, inspirada pelo que aprendi, vivi e senti.












Na Quinta do Poial vive-se o mundo ao contrário. Há, aliás, uma espécie de milagre da multiplicação dos hectares, em que um pequeno quadrado de terra é um útero mágico pronto a fazer germinar, época após época, o que lhe foi destinado. Nada é desperdiçado, o potencial da terra é aproveitado até ao último nutriente e assim percebemos a filosofia da agricultura e a sinergia entre a terra e quem a trabalha. Fico deslumbrada com toda a sua perfeição e faz-me acreditar numa ciência exacta transparente e de premissas irrefutáveis no meio da instabilidade louca dos modelos económicos falhados aplicados em nós como ratos de laboratório, com os quais nos esmurram todos os dias. Um dia na quinta é ter a certeza do ar puro que respiro, da qualidade e excelência dos alimentos, da extrema dedicação, humildade e valores de quem nela vive e trabalha. É ir, voltar e acreditar mais um bocadinho. Não sei bem em quê, mas acredito mais um bocadinho.


apresento-vos a jicama.