15.6.12

A falta das palavras ou da sua coerência

"Honestamente, a coisa deixou-me um bocado angustiado. Não conseguia entender se o objectivo da carta era reclamar, confessar, fazer uma espécie de declaração ou defender uma tese."

Haruki Murakami, O Elefante evapora-se


É a história da minha vida. Há sempre alguma coisa que quero dizer mas que se assemelha a uma matéria amorfa, a rebentar de sentidos mas sem propósitos. Há sempre alguma coisa mesmo que as palavras não sejam minhas. Mas digo-as de qualquer maneira na esperança de as conseguir compreender aos poucos, procurando reunir numa só toda matéria amorfa que as compõe, as minhas e as dos outros. Como uma polpa.
Na maior parte das vezes a matéria não chega aqui ou porque não lhe consigo dar forma ou porque, afinal de contas, este é um caderno sobre comida e tudo o que aqui está é o meu manifesto sobre ela e o que acontece é que tudo o resto não pertence aqui.

Há dois dias ia escrever algo sobre a culpa, passando pela indignação e antes que me apercebesse já tinha outro sobre o metafísico e não sabia bem o que queria dizer com cada um deles. E quando se perde alguém a coisa piora.


A avó Missas.
Inicialmente não pus aqui a foto, mas é tão bonita que seria crime não o fazer.

Assim como assim

Tanto ruído no interior deste silêncio: são as vozes dos outros a falarem em mim, pessoas de quem gostei, pessoas que perdi, gente que tenho ainda. Não me parece que herdei muito dos meus pais, dos meus avós, algumas coisas mais ou menos superficiais mas lá no fundo nada. Princípios, claro. Regras. O resto, quase tudo, fiz sempre sozinho. Estive sozinho nos momentos mais difíceis da minha vida, que sofri na carne como um cão: aquilo que, destilado, aparece nos livros, que são o itinerário da aprendizagem da dor, a certeza da vida redimir a morte, da necessidade da alegria, da serenidade conquistada a pulso. A humilde capacidade de admirar as pessoas, respeitá-las, que tanto tempo levei a conseguir. Olhar nos olhos o que um ano destes não serei. Custa-me a ideia de não escrever, um dia. Do mundo continuar sem mim. De perder corpos, calor: o que ganharei em troca? O meu pai foi-se embora há quatro anos: percebo hoje que existia entre eu e a morte, a defender-me sem saber que me defendia e que a partir de então, quando ela tocar à campainha, é a minha vez de abrir a porta: não quero chegar à maçaneta a tropeçar, quero mostrar-lhe a casa limpa e pronta. Dizer a quem se achar ao meu lado
-Eu já venho
E descer as escadas. Não se incomodem, não se levantem: sou capaz de descer as escadas sem ajuda até vários palmos abaixo da terra. Espero que haja sol nesse dia, um arrepio alegre nas árvores. Não se incomodem que já venho. Sentir-me-ão nos objectos, deixarão de sentir-me a pouco e pouco à medida que a saudade se atenua. Continuarei aqui atrás dos meus livros, na altura em que ninguém meu conhecido sobrar. Ficam retratos, claro, reflexos pálidos do que fui. Depois nem sequer os retratos, um nome apenas- Páginas e páginas que não imaginarão o que me custaram, a luta permanente, a dificuldade em limpá-las. Tem de passar-se as passas do Algarve para dar prazer ao leitor. Espero que Deus me conceda acabar três ou quatro textos, deixá-los prontos para que outros construam por cima, como eu construí por cima dos que me precederam. Se alguma dignidade de homem tenho deu-me a Arte. Hipócrates: a Arte é longa, a Vida breve, a Experiência enganadora e o Juízo difícil. O meu pai tinha isto num rectângulo de papel, no seu gabinete do hospital. A Arte é longa, a Vida é breve. Se te sentes desfalecer pega na tua própria mão para ganhares coragem. Talvez dê resultado. Tentaste. É noite agora, corri as cortinas, estou sozinho. Faltam-me os meus amigos, falta-me o mar. Estantes cheias de lombadas, esta mesa. A esferográfica que lá vai andando aos tropeções. Os cigarros são a água com que empurro a comida das frases. Gostava de deixar de fumar, uma escravidão estúpida. Eis-me sozinho rodeado de vozes. Ninguém me pode ajudar a fazer isto. Se cair do trapézio a responsabilidade é minha e o aleijar das costas também. Conseguirei agarrar o próximo, falharei? Não me interessa narrar histórias, contento-me em abrir o coração. A minha mãe fez noventa anos em dezembro: limita-se a esperar numa cadeira. No que me respeita não vou esperar numa cadeira: a mão desenhará letras até ao fim. Esta não é uma crónica melancólica: é a obstinação do ofício que pratico desde que me conheço, afastando sempre o que o estorvava. Pagam-me para fazer o que faria se qualquer maneira portanto sou uma criatura feliz.
Na altura em que a morte, de que falei há bocado, chegar, já a venci. Amanhã na batalha pensa em mim: um título do meu amigo Javier Marías. Hoje na batalha penso em vocês, não deixo de pensar em vocês. Somos tantos, cada um de nós é tantos.


António Lobo Antunes, Quarto Livro de Crónicas

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