15.9.14

verde

Há coisas que ficam. Não me lembro quando foi a primeira vez que fiz isto, mas já foi há muito. Mas estava tão bom que não foi a tempo da foto. Mas não me preocupei, porque na altura soube que iria ter muitas, muitas oportunidades para a tirar.

Passadas essas muitas, muitas oportunidades, eis que surgiu a dita.



Tartine de centeio e sementes de girassol, barrada com abacate impecavelmente maduro, com lâminas de cebola, maçã verde e finalizada com sumo de lima, coentros picados, um fio de azeite, pimenta preta e flor de sal, claro!




a ouvir: Frescobol - D'Alva

11.9.14

A ode ao bolo

Tenho uma estranha relação com bolos de aniversário. Gosto de cozinhar sem complicações, onde a inspiração leva ao recurso à técnica e o instinto dita a regra. No entanto, por mais que tente simplificar, por mais curto que seja o tempo e por menor que seja a minha capacidade de focalização no momento, quando chega a altura de oferecer um bolo de anos a alguém (inclusive a moi-même aheim), a complexidade é o que mais ordena. Qualquer um merece um bolo melhor do que aquele atentado ao gosto, aos diabetes, a doenças cardíacas que encontramos em qualquer pastelaria do país, constituído essencialmente por aquilo que é uma base enfadonha, recheada de natas batidas ou um doce de ovos duvidoso, coberto por uma outra camada de um centímetro de espessura do mesmo, ou com pasta de açúcar - não raramente com os dois ao mesmo tempo - adornada com um "feliz aniversário" ranhoso, rosas foleiras, bolinhas de açúcar em prata e outros rodriguinhos que vão directa mas discretamente para o guardanapo, enrolado e mantido na mão fechada, esperando a oportunidade certa de o deitar no lixo mais próximo. E por isso a frase "não gosto de bolos de aniversário" é tantas vezes ouvida da boca dos portugueses, como se os ditos tivessem já uma categoria própria, não obstante de serem provavelmente o símbolo máximo da celebração da vida de uma pessoa - a não ser que tenhamos entre os 20 e os 40 anos, em que existe a probabilidade de vinho, cerveja, gins e sangrias adquirirem esse estatuto.

Mas é por isso mesmo que adoro fazê-los. Poucas coisas na vida me fazem mais feliz do que ver os outros a provar lentamente. Apraz-me muito observar a primeira reacção à primeira dentada, ao primeiro pedaço engolido e ao outro sucessivo, aqueles que a tentar apanhar todos os elementos que constituem o bolo de uma só vez e os outros que gostam de desconstruir e comer cada elemento de cada vez, perceber de onde vem aquela frescura de um certo ingrediente, a acidez de outro, o que lhe incute uma certa profundidade e porque é que, apesar ser algo guloso, excessivo e indulgente, não se consegue parar de comer. Depois há aqueles que gostam de deixar o melhor para o fim e os outros que despacham tudo sem cerimónias em duas dentadas. Gosto especialmente do gesto final daquele que, depois do último pedaço,  pisa discretamente o prato com o dedo indicador apanhando as
últimas migalhas, ou o que, de mansinho, se aproxima do tabuleiro vazio para apanhar aquela cereja que ficou sozinha, caída de uma fatia que já lá não está.

Este é um bolo de aniversário quase perfeito para quase toda a gente. Certamente perfeito para os amantes de chocolate, cerejas e avelãs. O melhor de cada mundo. Perfeito porque a base de bolo de chocolate é doce e intensa mas não ao de se tornar enjoativo ao fim da primeira dentada, nem ao fim da quinta (quanto a mim, nem ao fim da segunda fatia...). Depois o merengue, aquela nuvem entusiasmante de dupla textura que põe um sorriso de descoberta na cara de qualquer um, de uma estranha frescura que eleva a base a outra dimensão, essencial para conferir uma certa leveza ao bolo, ao contrário da textura aborrecida e monocórdica das coberturas de manteiga ou pastas de açúcar mais comuns. Depois a avelã, que para quem sabe o que é Nutella não preciso dizer mais nada, a não ser que é 1000 vezes melhor. E as cerejas, assadas em rum, bom, são, efectivamente, a cereja no topo do bolo.
Perfeito mesmo perfeito porquê? Porque pode ser feito sem farinha.




Bolo de chocolate com Pavlova de avelã e cerejas assadas em rum
receita adaptada de Tartelette, Chocolate and Hazelnut Meringue Cake

Uma vez que o bolo teria de dar para alimentar por volta de 30 pessoas, e fazendo figas para que ninguém fosse intolerante ao glúten ou celíaco, resolvi acrescentar um pouco de farinha e fermento para que crescesse um pouco e não ficasse tão denso. No entanto, a farinha pode ser omitida completamente, tal como fiz na primeira versão deste bolo, aqui.
A receita original das receitas pedia whisky em vez de rum, mas por uma questão de coerência com o bolo, resolvi adicionar rum que sabia ser também é uma bebida alcoólica que funciona muito bem com fruta em sobremesas. Foi a utilização perfeita da última leva de cerejas que comprei este ano e que resolvi congelar, por estarem tão maduras e alcoólicas que já não as conseguia comer. No entanto, se for possível, cerejas frescas é o mais indicado.

para o bolo
150g de manteiga sem sal amolecida
190ml de açúcar amarelo, peneirado
6 ovos separados
200g de chocolate amargo, 70% cacau
160g de chocolate semi-amargo, 40% cacau
1 2/3 c.sopa de expresso
1 2/3 c.sopa de rum
1/4 c.chá de sal fino
20g de farinha (opcional)
1/2 c.chá de fermento em pó

para o merengue
120g de chocolate semi-amargo, 40% cacau, grosseiramente picado
120g de avelãs escaladas e peladas (este método é infalível!), grosseiramente picadas
1 c.sopa de amido de milho
190ml açúcar

para as cerejas assadas . receita adaptada daqui 
350g de cerejas, descongeladas e descaroçadas
50g de açúcar branco
1 c.sopa de rum

Preparar as cerejas e as avelãs
Escaldar as avelãs para lhes tirar a casca, conforme o método indicado acima.
Pré-aquecer o forno a 180ºC. Picar as avelãs grosseiramente, espalhar por um tabuleiro largo o suficiente para que estejam em apenas uma camada e reservar.
Colocar as cerejas em outro tabuleiro, com qualquer sumo que delas possa ter ficado ao descongelar. Envolvê-las bem com o rum e o açúcar, espalhar e colocar os dois tabuleiros no forno.
Retirar as avelãs ao fim de 12-15 minutos, mexendo-as uma vez para dourar uniformemente, até que estejam bem douradas. Retirar as cerejas ao fim de 20-30 minutos, mexendo-as também para que não se agarrem ao fundo do tabuleiro, até o liquido liberto começar a borbulhar e ter reduzido substancialmente e, ao provar uma, verificar que já absorveram bem o álcool e o açúcar.  Reservar enquanto o bolo é feito.

Bolo
Pré-aquecer o forno a 180ºC. Engordurar uma forma para bolos quadrada de 22x22 cm, ou de área semelhante e cobrir com papel vegetal.
Bater a manteiga com o açúcar cerca de 3 minutos, ou até ficar uma mistura cremosa e pálida.
Entretanto, derreter o chocolate em banho-maria.
Adicionar as gemas de ovo, uma de cada vez, batendo bem após cada adição, sem esquecer de raspar o fundo e as margens da tigela se for necessário para que fique tudo bem envolvido.
Juntar o chocolate derretido, o expresso, o rum e o sal. Bater até que fique tudo bem envolvido.
Se for usada, peneirar a farinha com o fermento, juntar à mistura pouco a pouco, envolvendo tudo muito bem.
Numa tigela larga, bater as claras dos ovos a velocidade máxima até ficarem levemente montadas, cerca de 2 minutos.
Envolver 1/3 das claras na mistura do chocolate, seguido do resto, cuidadosamente para não quebrar o ar das claras. Colocar a mistura na forma e levar ao forno durante 25 minutos ou até o teste do palito sair limpo, se levar farinha. Se não levar farinha, cerca de 40 minutos, até o bolo estar cozinhado mais ainda ligeiramente cremoso ao toque.
Transferir para uma grelha e deixar durante 10 minutos antes de desenformar.

Merengue
Engordurar e forrar com papel vegetal outra forma igual à do bolo.
Enquanto o bolo coze, envolver o chocolate, as avelãs e o amido do merengue numa pequena tigela.
Numa outra tigela grande, bater as claras a velocidade máxima até ficarem espumosas. Adcionar lentamente o açúcar e bater cerca de 8 minutos ou até formar claras em castelo bem duras.
Envolver a mistura do chocolate e da avelã.
Colocar o merengue na forma, levar ao forno igualmente a 180ºC durante 25-30 minutos, ou até ficar ligeiramente dourado, oco e crocante ao toque.
Transferir para uma grelha e deixar durante 10 minutos antes de desenformar.

Virar o bolo ao contrário para criar uma base plana para montar o merengue.
Cuidadosamente, pegando no papel vegetal que envolvia o merengue, colocá-lo sobre o bolo e puxar o papel vegetal devagar, rente à base do merengue. Endireitar se for necessário.
Espalhar as avelãs tostadas e as cerejas sobre o merengue e finalizar com o xarope feito das cerejas assadas.

Comer bem frio, acompanhado de amigos, amor e muita folia.


faz um bolo de 22 x 22 cm





a ouvir: Movin' On Up - Primal Scream

1.9.14

Voltei

Tenho aqui três rascunhos guardados, de três vezes de quando eu quase retomei isto. Três inícios completamente diferentes, três histórias e três receitas que entretanto ficaram por contar. Três nós de uma linha cheia deles. Uma linha de treze meses de comprimento.
Parei porque o coração sente, e quando se ama alguém, palavras para quê? Outras vezes não avancei por falta de coragem, por não conseguir voltar de repente sem mencionar todos os pequenos amuses que ficaram para trás, quando esse hiato virtual em nada se assemelha à quantidade de Vida que entretanto vivi. Parei também por praticabilidade. Porque o tempo não dá para tudo. Dá para as prioridades. Este lugar era uma quando dele fazia um Muro das Felicitações quando precisava de as contar para me manter em cima. Depois? Depois foi como se tivesse nos dois pratos da balança dois pesos que foram ficando progressivamente mais e mais opostos, e quanto mais tinha para deixar aqui, menos necessidade senti de o fazer.

Entretanto fui iniciada no chá preto à moda inglesa e gosto. Já o Marmite, tentei, mas não suporto.
Fiz aquela que considero a melhor tarte da minha vida e tenho plena noção do quão subjectiva esta afirmação é, mas não faz mal, porque é a minha vida.
Frequentemente os pequenos almoços-passaram a ser tomados a dois.
Tive experiências gastronómicas memoráveis (1 + 2 + 3 + 4 + 5 ... ). Outras, mais do que gostaria de admitir, nem tanto (1 + 23 (a sobremesa de gelado de mirtilo com carpaccio de ananás, no entanto, é fantástica).
Comi uma Francesinha.
Descobri que iogurte caseiros são 1000 vezes melhores do que qualquer um de compra, mesmo os biológicos.
Descobri onde comer comida de la mamma no centro de Lisboa. E estou completamente agarrada.
Voltei à escola. Uma escola diferente.
Fiz isto, que merece uma categoria só sua. E esta maravilha, tão simples e tão boa. E tudo aquilo que, se tiverem mesmo muita curiosidade, podem encontrar aqui.
Mudei de emprego. Duas vezes.
Fiz o meu primeiro trabalho como food photographer. O resultado foi este.
Descobri uma nova padaria.
Fui Snob.
Finalmente comi um autêntico phoo. Em Berlim, mas um pho.
Tal como aconteceu com a francesinha e o chá inglês, contra todas as expectativas e alguns princípios, transformei-me numa seguidora do gin tónico. E rendi-me a esta mousse.
Organizei uma festa para 30 pessoas para celebrar os 50 anos da mulher da minha vida.
Apanhámos figos directamente da árvore e comemos, comemos e comemos...
Celebrei os 23 em Terras de Sua Majestade e o Natal à grande, à alcoólica e à inglesa.
Andei por aqui. E aqui, duas vezes.
Fiz novos amigos de todas as cores e feitios (os outros todos guardo só para mim).
E tenho uma nova vista da cozinha.

E tudo isto é pouco, muito pouco.

Hoje trago bochechas. Algo que nunca teria provado por iniciativa própria porque é porco, e carne de porco não é algo que me atraia especialmente. Mediante isto, acontece que vivo com alguém que, posso dizer com alguma confiança, é seguramente o embaixador do porco preto e das ditas bochechas. Alguém que, se ler Bochechas na Carta não precisa saber mais nada. Eu, atacada pelo bicho da curiosidade inato do meu paladar (e da minha gula), provei, comi e adorei. É o tipo de carne que, se for bem feita, é autêntica comida para a alma. Acompanhada de um bom molho, saborosa, tenra, carnuda e sem gorduras perceptíveis, acompanhado com o que for, desde que em cima da mesa haja o pão para fare la scarpetta (temos de inventar um termo semelhante asap).

Há quem prefira as bochechas marinadas durante longas horas em vinho, tempero e especiarias, para depois poder cozê-las mais rapidamente e obtendo uma carne de textura toda muito uniforme, onde não se distingue as fibras, dos nervos e das gorduras, acabando com um resultado aparentemente processado, com pouca resistência e textura mas muito sabor. O embaixador é doido por estas, e até hoje só encontrámos quem as faça assim num único sítio em Lisboa.

No entanto, cozinheiro que é cozinheiro tem o seu quê de mistura de ego, confiança, orgulho e teimosia e eu decidi fazê-las à minha maneira. As bochechas foram douradas primeiro e depois lentamente estufadas durante 3 horas a lume muito brando. O resultado final foi umas bochechas a desfazerem-se na boca, absolutamente saborosas e húmidas, sentindo a cada garfada a fibra e a textura suculenta da carne. O molho é rico, espesso, intenso, com um equilíbrio entre a doçura do vermute e a acidez do vinho e das especiarias, juntamente com as notas fumadas do colorau e do aroma do alecrim. Servido com a salada morna de batata doce e figos verdes com o toque ácido do cebolinho, é na minha opinião quase O prato ideal - para amar, para conquistar e para celebrar.

P.S. Eu sei, é lamentável a qualidade miserável das fotografias. Foram tiradas de noite, com uma câmara do iphone e com a fome a apertar. Depois de muitos levels, filters and color balances, é o que se arranja.


Bochechas de porco preto estufadas em vermute

É importante que a panela utilizada seja pequena o suficiente para que não haja grande espaço entre as bochechas. Dessa maneira, ao adicionar os líquidos todos elas ficam completamente submersas, o que facilita muito o processo de cozedura.
De hora a hora é melhor verificar o estado do molho e ir provando, uma vez que pode ser necessário adicionar um pouco de água caso se esteja a evaporar depressa demais.

4 bochechas de porco preto (cerca de 600g)

azeite
sal e pimenta
125ml (1/2 cháv.) farinha

1 cebola pequena, bem picada
2 dentes de alho esmagados
2 folhas de louro
2 hastes de alecrim 8cm aprox.
8 grãos de pimenta preta
3 cravos da índia
1 pitada de pimenta da jamaica
2 c.chá paprika
350ml vermute
200ml de caldo vegetal
250ml de vinho tinto
1 c.sopa de manteiga

Misturar a farinha com sal e pimenta e envolver as bochechas com a mistura, sacudindo depois o excesso.
Fazer um fundo de azeite numa panela pequena e dourar bem as bochechas a lume médio-alto, por todos os lados. Retirar e reservar, mantendo o azeite na panela.
Mantendo o lume a médio-alto, adicionar a manteiga, as ervas e as especiarias durante alguns segundos. Juntar a cebola e o alho, baixar o lume um pouco e deixar a refogar até a cebola ganhar alguma cor e ficar completamente translúcida.
Devolver as bochechas à panela, adicionar os vinhos e o caldo levantar o lume para ferver e depois baixar para lume brando.
Deixar a cozer durante três horas, ou até as bochechas começarem a desfazer-se ao pressionar. Se o molho estiver muito líquido no final, destapar a panela e levantar o lume para que o molho espesse um pouco.



Batatas doces e figos verdes
Como acompanhamento quis apenas criar um bom complemento ao sabor já complexo, adocicado e intenso das bochechas, criando a ligação com o azeite aromatizado. Acho que o cebolinho vai especialmente bem e diria que quase essencial para dar o corte e proporcionar uma certa frescura ao resto do prato. Sem as bochechas, uns pedaços de queijo de cabra desfeito, ou até mesmo um belo queijo da ilha fariam deste simples acompanhamento um killer e prato principal.

3 batatas-doces pequenas
6 figos verdes, cortados ao meio longitudinalmente
3 c. sopa de azeite
1 haste de alecrim
flor de sal
pimenta preta fresca, moída
cebolinho

Cozer as batatas doces inteiras e com pele. Deixar arrefecer um pouco até dar para tocar nelas. Cortá-las ao meio longitudinalmente e reservar.
Numa frigideira, colocar o azeite e o alecrim em lume muito brando até o azeite ficar bem aromatizado.
Retirar o alecrim, aumentar o lume e quando o azeite tiver bem quente adicionar as batatas e os figos. Deixar dourar bem em todos os lados, especialmente na face cortada, virando de vez em quando para dourar e para que não colem no fundo da frigideira.
Retirar, temperar com flor de sal e pimenta, cebolinho picado a gosto e servir quente com as bochechas.


serve 2


a ouvir: La verdad - Juana Molina